Uma reportagem veiculada recentemente no Fantástico reacendeu o debate sobre o haxixe “Ice” — uma forma concentrada de cannabis que tem ganhado popularidade entre jovens de classe média e alta no Brasil. Retratado como uma “maconha de playboy”, o Ice vem sendo apresentado como uma ameaça crescente, o que tem gerado preocupação entre autoridades e alarde na imprensa.
Parte do crescimento da popularidade do Ice entre os jovens está diretamente ligada ao seu destaque em músicas de funk, trap e rap, onde o uso dessa substância passou a ser mencionado como símbolo de status ou rebeldia. Essa presença cultural amplia o alcance da substância, especialmente entre adolescentes e jovens adultos. No entanto, é preciso separar o sensacionalismo da realidade técnica e científica.
O primeiro equívoco é tratar o Ice como se fosse uma substância sintética, comparável ao K9 ou ao Crack, por exemplo. Essa comparação é completamente descabida. O Ice, na verdade, é apenas uma forma de haxixe, ou seja, um concentrado da própria planta cannabis sativa, popularmente conhecida como Maconha.
O milenar haxixe
O haxixe tem registros arqueológicos de uso medicinal e ritualístico há milênios, sendo uma das formas mais antigas de consumo da cannabis. O que hoje é chamado de Ice nada mais é do que um tipo de haxixe produzido por meio de extração com água e gelo, conhecido também como bubble hash.
Essa técnica surgiu nos anos 1990 e se tornou popular justamente por dispensar o uso de solventes químicos, recorrendo apenas a gelo, água, filtros específicos e muita paciência e técnica de quem executa. Em outras palavras, é um método natural de extração e seguro quando bem executado. O real problema não está no produto em si, mas na ausência de regulação que transforma o Ice e outras substâncias em algo arriscado.
No mercado ilegal não há controle de qualidade. Isso significa que aquilo que é vendido como Ice pode estar contaminado, adulterado ou malfeito e isso, sim, é perigoso. O consumidor não sabe o que está comprando, não tem acesso à composição do produto, nem às concentrações de canabinoides e outros compostos. O maior risco não é o THC em si, mas o cenário proibicionista que empurra essas substâncias para as mãos de um mercado clandestino.
Muito se fala do alto teor de THC nesses concentrados e esse é um assunto importante de ser debatido com responsabilidade. De fato, o Ice pode apresentar concentrações elevadas de THC e isso pode ser prejudicial para algumas pessoas, especialmente pessoas jovens (abaixo dos 21 anos) ou com histórico familiar de transtornos psiquiátricos como esquizofrenia ou transtorno bipolar. É fundamental deixar claro: nem a cannabis nem seus concentrados causam esquizofrenia. O que pode acontecer, em pessoas predispostas, é o desencadeamento da primeira crise após o consumo exagerado de THC, mas isso também pode ocorrer com o uso de álcool, tabaco, medicamentos, drogas sintéticas ou até mesmo em situações de estresse ou trauma psicoemocional.

Concentrados no uso medicinal
Por outro lado, os concentrados de THC, quando utilizados de forma orientada e responsável, têm usos terapêuticos interessantes no manejo da dor crônica, náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia, distúrbios neurodegenerativos como Alzheimer, Parkinson e Esclerose Múltipla, e outras condições clínicas. Para quem realmente necessita de extratos concentrados de cannabis por razões terapêuticas, existem alternativas muito mais seguras e eficazes do que a queima direta, como fumar ou “carburar”.
Esses extratos podem ser transformados em óleos medicinais, incorporados a alimentos (comestíveis) ou administrados por meio de vaporizadores específicos de uso medicinal, que permitem o controle preciso da temperatura e reduzem significativamente os danos à saúde pulmonar. O acesso a essas formas mais seguras depende de orientação profissional adequada e, quando possível, de caminhos legais como o autocultivo ou o uso por meio de associações regularizadas.
A proibição não apenas expõe os usuários a riscos evitáveis, como também dificulta o acesso de pacientes que realmente precisam desses compostos em contextos médicos. O verdadeiro problema nunca foi a planta, e sim a proibição que transforma um extrato milenar em um produto caro, mal feito e tratado como droga de elite. A própria qualidade do Ice vendidos no mercado ilegal é extremamente baixa e esse é o tipo de debate que deveria estar sendo feito com seriedade: por que um produto com potencial terapêutico e uso milenar segue sendo empurrado para a ilegalidade?
Pela liberdade da planta e todos os seus potenciais
Se houvesse regulamentação, os extratos poderiam ser vendidos com controle de qualidade, orientação médica e segurança, tanto para o uso terapêutico quanto para o uso adulto. É incongruente que substâncias como o álcool e o tabaco, cujos danos à saúde pública são amplamente documentados sejam aceitas e comercializadas, enquanto a cannabis segue sendo marginalizada.
Hoje existem caminhos legais para acessar derivados da cannabis, inclusive concentrados aqui no Brasil. Associações de pacientes com decisões judiciais e o autocultivo com Habeas Corpus preventivo são
alternativas reais para quem tem prescrição médica e busca um tratamento seguro, responsável e legal. É fundamental que quem já faz uso de produtos de cannabis ou deseja iniciar, busque uma avaliação com um profissional de saúde de confiança.
O debate sobre o Ice deve ir além do pânico moral e da superficialidade da cobertura midiática. É preciso tratar a cannabis com a complexidade que ela exige: como planta, como substância, como símbolo político e como ferramenta terapêutica. Se queremos enfrentar os riscos, precisamos de informação, responsabilidade e, sobretudo, regulamentação.

