No começo do mês, impetrei um habeas corpus para cultivo de cannabis em favor de um médico veterinário diagnosticado com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e Insônia Crônica severa. O pedido foi protocolado em uma sexta-feira à noite, e já na segunda-feira seguinte acordei com a boa notícia de que o juiz federal de Londrina concedeu liminarmente o salvo-conduto, autorizando esse paciente a importar sementes, plantar a própria cannabis, extrair o óleo e utilizá-lo sem medo de perseguição policial.
Assinei a peça ao lado do colega Vinicius Fregonezi Bahia, e isso foi significativo, já que ambos militamos no Direito e na política de drogas porque entendemos que justiça social não se constrói sem enfrentar o proibicionismo. Como integrante da Comissão de Políticas sobre Drogas da OABPR e do coletivo da Marcha da Maconha de Londrina, cujo grito deste ano ecoa alto: “Plantando cura, colhendo justiça”, afirmo com felicidade que esta decisão judicial materializa exatamente isso.
O caso concreto: saúde acima da burocracia
Nos autos, ficaram comprovados anos de sofrimento do paciente — medos excessivos, taquicardia, noites sem dormir — e a resposta terapêutica que ele obteve somente depois de iniciar o uso de óleo de cannabis. Resposta, aliás, que as medicações convencionais jamais lhe proporcionaram. A conta era simples: ou continuar pagando em dólar por um frasco importado e arriscar interromper o tratamento, ou cultivar em casa, com acompanhamento médico, a planta que lhe devolve qualidade de vida.
O magistrado seguiu os precedentes recentes do STJ e do TRF-4, reconhecendo a atipicidade do cultivo artesanal para fins medicinais quando há prescrição e ausência de dolo. Mais do que citar jurisprudência, ele reconheceu o óbvio: maconha não se trata de porta de entrada para nada além do direito fundamental à saúde.
Por que essa liminar importa (e muito)
Essa decisão materializa avanço e segurança jurídica. Cada salvo-conduto reforça o entendimento de que a criminalização cega do autocultivo medicinal é incompatível com a dignidade humana. A jurisprudência reforça que o direito à saúde não pode ser ignorado e que a repressão não pode atingir pacientes. Em outras palavras, o direito individual à saúde começa a limitar o poder de aplicar leis penais contra quem cultiva por necessidade médica.
A concessão do salvo-conduto para o paciente produzir o próprio remédio também desonera o SUS e o bolso do paciente, uma vez que a produção do fitoterápico reduz custos astronômicos de importação e judicializações para fornecimento de medicamento.
Há também a mudança paradigmática do Estado de “inimigo” a “garantidor de direitos”, uma vez que a concessão do salvo-conduto desloca a atuação do Estado de punidor (polícia, MP, juízes) a garantidor do acesso à terapia canabinoide. A fundamentação judicial enfatiza a ausência de dolo e a finalidade terapêutica, alinhando-se com precedentes do STJ (2022–2023) que apontam para a atipicidade penal dessas condutas. Ou seja, trata-se de um indicativo de que a política pública de drogas pode evoluir do modelo proibitivo para um modelo centrado na saúde, baseado em evidência médica.
Em Londrina, o salvo-conduto destaca as falhas do sistema — alta burocracia, falta de acesso via Anvisa ou SUS — evidenciando que a “guerra às drogas” falha em proteger pacientes e ônus públicos poderiam ser reduzidos com inclusão regulada da cannabis medicinal.
Das salas de audiência às ruas
A liminar que comemoramos é fruto direto desse ativismo: se marchamos para tornar o cultivo caseiro uma realidade coletiva, advogamos para garanti-lo individualmente, caso a caso, enquanto a lei não protege. É a junção de rua, parlamento e tribunal — tripé sem o qual a política pública nunca sairá do papel.
A decisão de Londrina não substitui a urgência de um marco regulatório que inclua:
a) cultivo doméstico e associativo com acompanhamento médico e boas práticas de fabricação;
b) quebra do monopólio farmacêutico, pois remédio não pode ser privilégio de quem pode pagar caro por ele;
c) reparação histórica a famílias negras, indígenas e periféricas criminalizadas;
d) educação canábica que supere o pânico moral e informe sobre o Sistema Endocanabinoide que todo ser humano possui.
Enquanto o Congresso dorme sobre PLs engavetados, pacientes seguem plantando às escondidas. Eles não podem esperar. E nós — advogados, médicos, mães, growers, educadores — tampouco devemos cruzar os braços.
Um minuto de celebração, muitos anos de luta
Confesso: quando li a palavra “concedo” na tela do computador me emocionei de verdade. Foi um instante de vitória pessoal, claro, mas sobretudo coletiva. Cada salvo-conduto é semente, e onde há repressão, nossa resistência floresce.
Plantaremos quantas sementes forem necessárias até que ninguém mais precise pedir permissão para cuidar de si. Porque maconha é direito. Porque saúde não se adia. Porque justiça se colhe regando a coragem de todos que, ontem, hoje e amanhã, não param de cultivar esperança.

