No universo onde o futebol se funde com a indústria do espetáculo, onde cada músculo é monitorado, e cada palavra é medida como se fosse um contrato, há um assunto que permanece trancado nos vestiários, falado em códigos (Ronaldo e Edmundo sabem bem) risos abafados ou demissões discretas: a maconha.
Jogadores fumam. Jogadores já fumaram. Jogadores provavelmente estão fumando agora. Mas quem fala disso? Quem quer se expor?
Não é pelo efeito. Não é pelo crime. É pela propaganda. Maconha ainda é, para o futebol profissional, um escândalo — não pelos danos, mas pelo que confronta: o modelo do atleta como exemplo, como herói limpo, como soldado do rendimento e da disciplina. E num meio onde a cerveja patrocina as arenas, whisky é cool, e as casas de apostas estão nas camisas e nas cabeças, a erva ainda é tratada como crime moral, o demônio reencarnado na terra.
Uma nuvem de hipocrisia
Marcos Rojo, zagueiro argentino do Boca Juniors, foi flagrado fumando um baseado durante a celebração do título da Copa da Liga Argentina em 2024. Ao ser questionado, respondeu: “Tinha que ganhar primeiro, não?” — gênio, sou seu fã, um tapa sem mão e uma gargalhada no sistema.
Enquanto isso, no Brasil, Arrascaeta, craque do Flamengo, foi investigado pelo Ministério Público Federal por suposta “apologia à maconha” após uma comemoração de gol no qual aparece fazendo um gesto com a mão que muitos interpretaram como referência à maconha, e era mesmo já que a maconha é legalizada no seu país Uruguai, que trata o uso da erva sem hipocrisia. O inquérito foi arquivado. Mas o alerta está dado: tudo se vigia.
Não importa se a comemoração era dúbia. Importa o que ele poderia representar. Importa o cheiro do gesto. Importa o que a mídia projeta, o que o público espera, o que o patrocinador tolera. Maconha no futebol ainda é mais grave que jogar mal. Mais grave que trair. Mais grave que bater em mulher. Mais grave que racismo. Mais grave que dirigir bêbado.

O corpo moído e a planta que acalma
Num cenário em que a rotina de um jogador de elite envolve treinos diários, viagens constantes, pressão pública, vigilância nas redes e exigência de performance contínua, a maconha não é uma ameaça. Pode ser alívio.
Estudos mostram que os canabinóides têm propriedades anti-inflamatórias, analgésicas, ansiolíticas e relaxantes musculares. Hoje, o futebol exige cada vez mais uma alta performance, e a fissura contra a planta é tão grande que eles ignoram uma medicina poderosa que poderia ajudar ainda mais no alto rendimento exigido.
Nos Estados Unidos, esportes como o basquete e o futebol americano têm cada vez mais atletas — ex e ativos — admitindo o uso medicinal e recreativo da planta, seja para lidar com dores crônicas, traumas, insônia ou simplesmente o estresse de viver como produto. E foram as estrelas do show que botaram a cara, Kevin Durant deu inúmeras entrevistas afirmando o uso, e que já que os dirigentes bebem vinho e whisky ele ia continuar fumando a maconha dele.
“Fui conversar (com o Adam Silver, comissário da NBA) e ele já sentiu o cheiro. Eu realmente não precisava dizer muito. O estigma que a maconha tem não é tão negativo quanto costumava ser. Não te afeta de forma alguma, eu só gosto da planta. Simples assim.” – confessou Durant durante entrevista.
Mas no futebol, especialmente no Brasil e na América Latina, onde a criminalização da erva ainda é profundamente racializada e moralista, o assunto permanece tabu. A planta que poderia ajudar a regenerar tendões, acalmar a mente e salvar carreiras, ainda é tratada como símbolo de desvio de caráter. Eu já falei que jogador dirige bêbado?
O jogador fuma e se cala. Ou fuma e dança na linha — como fizeram dois jogadores do Leverkusen, sensação da temporada europeia, ao comemorar um gol simulando um trago de baseado. Ironia ou confissão? O gesto ecoou mais que o gol. Porque ousar é romper o pacto.

Quem ousou falar, quem ousou ser
Rhayner, ex-atacante do Bahia e do Vitória, foi um dos poucos que expôs, sem filtro, sua relação com as drogas. Admitiu em 2015 que já usou, traficou e foi viciado. Foi julgado, claro. Mas sua fala abriu uma janela breve para uma verdade pouco confortável: o futebol é também um espelho da rua. E a rua fuma.
“- Eu vendia também, além de usar. Eu vendia para manter meu vício, vendia mais cocaína. Isso foi antes de eu iniciar minha carreira, eu tinha 16 ou 17 anos. No meu bairro, tinha muito tráfico. Quando eu comecei a jogar, eu larguei. (…) Fui viciado em maconha, cheguei a usar cocaína também, entre outras drogas, como lança-perfume e outros tipos que são burladas para não cair no exame antidoping” – disse o atacante na entrevista para o Correio.
Em outra ponta, casos de demissão por consumo de maconha são comuns, especialmente nas divisões inferiores, onde o julgamento moral é mais rápido que o VAR. Um atacante do Remo, flagrado fumando em público, foi cortado do time sem chance de explicação. Nenhuma análise sobre o contexto, a saúde, a humanidade. Só corte. A ética do espetáculo exige rostos limpos — mesmo que as veias sangrem.
No futebol de elite, há uma blindagem invisível. Jogadores top têm assessorias, contratos e advogados. Fumam no silêncio. Às vezes nos bastidores das concentrações, nas mansões longe das câmeras, em viagens para países onde a planta é legalizada. Pode tudo, só não pode ser flagrado, mas se for, dependendo do seu valor de mercado o dirigente dá um jeitinho antes de cair na opinião pública.
O mercado do esporte e a lógica da ilusão
A maconha não é só droga. É símbolo. E o símbolo é tudo que o futebol quer controlar. Patrocinado por empresas de álcool e apostas, o futebol contemporâneo quer vender espetáculo, não verdade. O atleta não pode parecer frágil, cansado, humano.
Não pode falar do uso da planta, mesmo que em comestíveis, mesmo que em óleo, não pode pensar por si próprio, não pode parar mas se quiser pode encher a cara de álcool até mesmo dentro de campo, o patrocinador gosta, o patrocinador apoia, o patrocinador inclusive que é a grande marca que faz a roda girar e não se importa se jovens de 16 anos vão mimetizar o comportamento.
Enquanto isso, o mundo muda. Leis caem, pesquisas se acumulam, e o estigma vai sendo corroído pelo tempo. Mas o futebol, esse templo da performance, segue devoto da hipocrisia.

Fumaça como metáfora: o futebol que resiste
Longe dos holofotes dos grandes craques, nos gritos ecoando em plenos pulmões, onde concreto treme, onde a alma atinge o nirvana e as veias pulsam vida, o futebol ainda respira um ar mais sincero.
Sim, estou falando das torcidas, dos torcedores, das hinchadas, ali mesmo, a erva é parte da vida — não um problema, mas um detalhe. Um momento de trégua entre um tempo e outro, ali embaixo do bandeirão. Ali, talvez, o futebol ainda seja humano, onde somente o sentimento importa. Isso é um capítulo à parte.
E é dessa fumaça que vem a pergunta que fica: Por que o futebol, que nasceu da rua, tem tanto medo do que sempre esteve nela?
