De paciente terminal a ativista antiproibicionista

Minha história vivendo entre a cannabis medicinal e a maconha, linha tênue entre sagrada e profana
paciente ativista antiproibicionista

Bão? Minha história com a maconha começou como a da maioria dos brasileiros, enxergando a planta como a “erva do diabo”, mas no fim foi um dos principais motivos para eu estar viva e escrevendo esse artigo.

Dando um contexto, nasci na periferia de Belo Horizonte, consideravelmente próximo a cidade Ribeirão das Neves, conhecida por ter o primeiro presídio privatizado no Brasil – sempre ouvi coisas da planta baseadas em opiniões, disfarçadas de fatos, um tanto quanto exageradas e quase flertando com o cômico, frases como “se você cheirar maconha, você vai morrer!” era tão comum que beirava ao roteirizado.

O alto índice de criminalidade regional se unia ao medo do desconhecido semelhante, eu desconhecia os potenciais medicinais e industriais da planta, mas  reconhecia enquadros e perseguições policiais – a dita Cannabis Medicinal nunca tinha chego ao meu conhecimento, porém a guerra às drogas se fazia presente.

Diagnóstico e quase morte

Aos 11 anos tive meu primeiro AVC, descobri ser portadora de uma doença rara chamada má formação arteriovenosa (MAV), localizada próximo ao cerebelo e minha data-limite, por assim dizer, seria somente até os 18 anos. Foi um momento de extrema vulnerabilidade, não consigo descrever em palavras como foi receber essa notícia – é claro que não recebi ela sozinha e felizmente pude contar com o apoio de família e amigos, mas a dor da morte iminente é solitária e no fim, somente a mim pertence.

paciente ativista antiproibicionista
Segundo AVC, 2018 | Foto: Lilian Araujo /Arquivo pessoal

Faltando alguns meses para o meu aniversário de 15 anos tive meu segundo AVC, ao contrário do primeiro, esse foi quase fatal. Passei um período em coma (não me lembrarei ao certo quanto tempo foi, afinal eu estava inconsciente) e me vi entre a vida e a morte, médicos falando coisas como “com muita sorte ela irá acordar, mas provavelmente ficará em estado vegetativo”.

Não sei ao certo quanto tempo foi o coma, mas pareceu uma eternidade. Era como se eu estivesse presa em um loop de filmes de terror com baixo orçamento, revivendo momentos traumáticos da minha vida e tendo pesadelos constantes dignos de um clichê de horror dos anos 80.

Então acordei, sem entender porque estava em um hospital, sem meu piercing estiloso, sem metade do meu cabelo, sem entender porque eu não conseguia movimentar metade do meu corpo e o mais estranho, sem entender porque eu estava sentindo frio nas minhas nádegas – hoje entendo que era porque eu estava de avental hospitalar.

O período em que me encontrei internada foi um tempo nebuloso, é assustador estar em um local em que você conversa com uma pessoa em um dia e no outro, ela está morta, todas as pessoas com que dividi o quarto hospitalar acabaram falecendo e frequentemente me perguntava “será que serei a próxima?”. As noites em hospitais públicos e precarizados representam temores a parte, o silêncio é barulhento, seu som é de sirene, lágrimas e desfibriladores.

paciente ativista antiproibicionista
Segundo AVC, 2018 | Foto: Lilian Araújo /Arquivo pessoal

Dois meses se passaram e a “garota popular do ensino médio” começou a se resumir em uma menina sempre cabisbaixa, melancólica na cadeira de rodas. Meu sonho de me tornar uma pintora foi abalado quando me vi sequer conseguindo segurar o pincel e meus pensamentos diários eram “está acabando, só preciso aguentar até os 18 anos”, a tão aterrorizante data-limite tinha começado a se tornar um desejo.

A depressão se tornou minha companheira diária, ninguém te prepara para a dor que é ver sua família se esforçar para facilitar os seus prováveis últimos anos, mas inexiste a perspectiva de felicidade nesse momento da minha curta experiência mundana. Sorrir se tornou obrigatório, eu sorria por eles e falava “eu estou bem”, mas não era verdade, fingir já tinha se tornado minha sina e assim foi por anos.

Reencontro com a erva e início do ativismo

Em 2020 me deparei com uma notícia um tanto peculiar, mas com uma temática que eu já tinha ouvido falar anteriormente, “maconha como tratamento para saúde”, todo pensamento de “erva do diabo” pairou em minha cabeça, porém a esperança de viver bem meus últimos meses me chamou mais atenção – esperança essa que foi duramente abalada após ver os altos valores do óleo.

Meu primeiro contato foi através de óleo de cânhamo de origem duvidosa, me senti bem e eu pensava que “cannabis sativa” era tudo igual, porém logo depois aprendi um pouco sobre canabinoides (THC e CBD), recomeço da minha quase-saga. Eu só conhecia maconha como um tijolo prensado e mofado, tudo o que eu tinha era isso e foi com isso que fiz meu primeiro óleo, essa foi a época que comecei a dar meus primeiros passos com apoio.

O tratamento com a planta me salvou – não só isso, mas me deu a perspectiva de que eu mesma poderia me salvar. No primeiro semestre senti diminuição das dores, melhora na mobilidade e a melhora no humor – as primeiras vezes que eu sorria sem ter que me forçar a isso.

Como canta Carlos Posada, “as coisas acontecem de uma hora pra outra, mesmo que demorem a vida inteira para acontecer”, minha mente estava em frangalhos e atualmente eu consigo ver o quanto a maconha me fez bem de início, mas na época não conseguia enxergar tão bem, é uma mudança que acontece de forma interna e sútil – meu cérebro estava tão viciado em cortisol que queria a mudança rápida, porém se esquecendo do fato que internamente eu estava pior, minha cura começou com um processo em silêncio.

paciente ativista helen sampaio
Autoretrato, 2023 | Foto: Helen Sampaio/Arquivo pessoal

Na mesma época, me apaixonei por uma pessoa do mesmo gênero – deu certo por pouco tempo, porém tempo o suficiente para que eu sentisse a necessidade de assumir a minha bissexualidade e mesmo acreditando que minha família, apesar da origem conservadora, iria conviver bem com isso, a possibilidade de não aceitarem e isso fluir para uma possível expulsão, me assustava.

No fim aceitaram, porém comecei a pensar em caso não tivesse ocorrido tudo bem, juntei todos os poemas escritos para aquela paixão infrutífera e me juntei com um parceiro artista vulgo Henrick Tsade, dessa confluência artística surgiu o mini livro digital e o grafite chamado “A Sol e a Lua” – a história de amor e desamor entre duas astro-rainhas, o objetivo central desse trabalho era a arrecadação de fundos para abrigos LGBT+ periféricos.

A existência de “A Sol e a Lua” se mesclou ao início do meu tratamento com a planta, estudei o mal-estar da população marginalizada olhando pela ótica punitivista da guerra às drogas e também tive a perspectiva de que a realidade de muitos ao meu redor seria diferente, caso o acesso aos medicamentos à base de Cannabis não fosse inacessível para grande parcela da população.

Acabei conhecendo sobre as associações e através delas conheci o trabalho da MOVRECAM, que tem um curso de extensão sobre o uso terapêutico da Cannabis Sativa L. juntamente com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), me possibilitando o aprofundar na temática da planta e me conectando com pessoas que viriam a abrir mais a minha mente.

Meus primeiros mentores, por assim dizer, foram a ativista antiproibicionista Ana Helena Carrijo e o médico prescritor dr. Felipe Mourão. Conhece-los coincidiu com o fato de que a compra do óleo estava começando a ficar cada vez mais inacessível, me levando a tomar decisões que naquela época soaram como drásticas – o início do autocultivo.

Já dizia Planet Hemp, “Não compre, plante!”

O meu início na desobediência cívil foi com semente de prensado e um abajur no chão, carinhosamente conhecida como “growbiarra”, junto com isso iniciou-se também o meu ativismo na Internet – sob o pseudônimo “Dirty Ponto” comecei a compartilhar informações sobre o universo canábico como um todo (indo de cultivo até fatos históricos ou direitos que todo usuário deveria saber), esses conteúdos eram feitos e compartilhados juntamente com outros ativistas, médicos, advogados, coletivos e organizações não-governamentais.

paciente ativista helen sampaio
Growbiarra, 2023 | Foto: Helen Sampaio/Arquivo pessoal

Mesmo conhecendo os meus direitos enquanto cultivadora, meu ativismo e minha ascensão causava um receio em meus familiares e pessoas próximas – apesar da minha melhora, ainda é uma planta estigmatizada, o medo da prisão me assombrava e cada toque no portão me assustava, a possibilidade de uma denuncia anônima me amedrontava, o pensamento de parar meu cultivo e voltar para os remédios convencionais começaram a aparecer, não sei o que parecia pior: a possibilidade da perda da vida ou da liberdade.

Costumo falar que meu medo não me para, eu o uso como combustível (porém, surto antes). Em 2023, tive a oportunidade de ir no I Congresso de Cannabis e Psicologia que ocorreu na UFMG e nesse local recebi uma revista gratuita sobre educação sobre Cannabis, esse foi meu primeiro contato com a primeira empresa que em alguns meses iria marcar minha trajetória, Kamah. 

O caminho das flores 

A Kamah é uma empresa que utiliza a maconha como tecnologia ancestral para a reparação histórico-social, um flerte divino com a utopia e meu eterno lembrete de que sonhos coletivos criam realidades palpáveis, a existência dela ainda me soa como algo que eu fico maravilhada em ouvir. 

Vindo de um contexto no qual falar da planta era motivo de estranhamento, a existência de algumas pessoas e organizações me causam um sentimento genuíno de esperançar, um aviso prévio de que agora está difícil e beirando ao impossível, mas vai fluir alguma hora – muito do meu pensamento também veio do início da minha relação com a organização Rede Reforma, um coletivo jurídico pautado na transformação da política de drogas brasileira.

De 2023 a 2025 aconteceram várias ocasiões que simplesmente me fazem acreditar naquilo que não é possível, como ser homenageada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, minha entrada para a Marcha da Maconha BH e ter a oportunidade de falar sobre a planta para favelados, quilombolas e indígenas no II Fala Quilombo – o que me remete a frase de Nego Bispo, “no dia em que os quilombos perderem o medo das favelas, as favelas acreditarem nos quilombos, e os dois juntos conhecerem as aldeias, o asfalto vai derreter”.

paciente ativista helen sampaio
Marcha da Maconha BH, 2025 | Foto: Luiza Sampaio /Arquivo pessoal

2025 está sendo o ano que está me provando a certeza de Ailton Krenak quando ele diz que o futuro é ancestral, meu caminho se entrelaça com o da agência de turismo alternativo Briza27, focada em países do continente africano, foi a responsável por dilatar meus poros ancestrais e me reconectar profundamente com o meu propósito, aumentando meu entendimento e conexão com o ato de ser uma mulher afro-indigena no nosso país. 

Isso confluiu para a minha entrada no selo Akoma Ntoso, um movimento pró-reparações e justiça de transição, me tornando liderança política do Frente Negra BH juntamente com a advogada antiproibicionista Âmara Stolf – isso coincidiu com o fato de que o meu auto-cultivo foi finalmente permitido por lei graças a Rede Reforma.

Esse momento teve um grande peso na minha trajetória e esse sentimento aumenta quando relembro fatos do início do meu auto-cultivo. É um sentimento de liberdade individual, mas flui como se uma bigorna saísse de cima das minhas costas. Um lembrete do meu ato de ser livre, porém o impulso que eu precisava para que essa felicidade não se limite a minha existência – a felicidade é mais gostosa quando coletiva.

paciente ativista helen sampaio
Luiza Sampaio, Helen Sampaio, Henrick Tsade e Felipe Hermine na homenagem na Assembleia Legislativa, 2024 | Foto: Leandro Brito /Arquivo pessoal

Em junho, poucos dias após meu aniversário de 23 anos, tive uma consulta com o neurocirurgião dr. Leonardo Gomes e recebi a notícia de que a minha doença finalmente se estabilizou e a MAV não tinha sido a principal causa do AVC, porém o aneurisma em decorrência da mesma. O aneurisma fechou, a MAV estabilizou e minha vida, enfim, começou.

Acredito fortemente que não há males que vem para o bem, porém as dificuldades podem ser convites para o auto-desenvolvimento. Apesar de falar que meu medo não me para, tenho que confessar que me para sim por um tempo – não vou me cobrar o contrário, descanso também é movimento. Inexiste em mim o discurso de que com todas as dificuldades seu dever é não se abalar com nada, o que me guiou durante esses anos foi o pensamento de que tudo passa, mas antes atropela.

Helen Sampaio

maconhometro
Compartilhe
Rolar para cima